
"Não crie um conceito pré-estabelecido pela imprensa. Fale conosco, e não sobre nós."
André Azevedo
Vice-presidente da Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg)

Foto: acervo da Máfia Azul

Ser torcedor é... Às vezes, algo nasce por herança de família, por imposição dos pais, ou, até mesmo, por afinidades inexplicáveis. Logo nos primeiros meses de vida, garotos e garotas são apresentados a um time. Trata-se da equipe para a qual dedicaremos nossas tardes de domingo, em frente à televisão ou no estádio. Em outras palavras, o clube a quem dedicaremos amor, até os últimos minutos de jogo – e mesmo que perca de goleada.
Tal cenário de paixões clubísticas, afinal de contas, diz respeito ao modo como vivemos no “país do futebol”. Que sentimento é esse, capaz de fazer, do time, uma espécie de religião, ou de partido político? Lembra-se do primeiro amor da adolescência? Pois bem! A sensação parece a mesma! O que nos move, enfim, a defender as cores da camisa esportiva com unhas e dentes? Para além de respostas, se também for torcedor, você há de compreender – às vezes, sem explicar – a natureza de tal afeto.
O grande espaço ocupado pelo futebol na vida dos brasileiros – e na televisão – dá-se pela tradição e pela cultura de nossa sociedade. Desde criança, o torcedor acompanha os jogos assiduamente. Até mesmo aqueles que não se sentem identificados pelo esporte, em algum momento da vida, veem-se incluídos no cenário como torcedores, sejam influenciados por gritos de gol, acompanhados por avós e tios, ou empurrados por um pai apaixonado por futebol.
Fica mais fácil compreender tal sentimento quando se fala em seleção brasileira: nos jogos de Copa do Mundo, as famílias se reúnem para assistir aos jogos. Quem não se lembra do Brasil do tri, do tetra, do penta... Com certeza, alguns desses episódios estão guardados em sua memória, não é verdade? O brasileiro aprendeu a torcer diante da TV. Daí o vínculo cultural criado entre torcedores apaixonados por futebol e a televisão.
Foto: Gabriel Castro
Foto: acervo da Avacoelhada
Paixão organizada
A necessidade de defender “uma camisa” levou muitas pessoas a participar de grupos de apaixonados por clubes de ludopédio: falo, é claro, das torcidas organizadas. No Brasil, o primeiro aglomerado de “fanáticos” torcia pelo São Paulo Futebol Clube. Criada em 1939, a Grêmio São-Paulino – ou Torcida Uniformizada do São Paulo (TUSP) – reunia pessoas que se identificavam com o clube e apreciavam exibir a camisa personalizada do time, feita, com carinho, por eles próprios.
Devido a um conflito interno, porém, alguns integrantes se desassociaram, para criar, nos anos 1970, a Torcida Independente, com caráter completamente distinto. Além dos uniformes, eles faziam barulho na arquibancada e tinham suas próprias músicas, já similares a gritos de guerra.
No Rio de Janeiro, nos anos 1940, nasce a Charanga Rubro-Negra, ligada, obviamente, ao Flamengo. O nome remetia ao caráter único – exclusivamente festivo – do grupo, que levava instrumentos musicais ao estádio.
No início da década de 1960, a coisa começa a ficar mais séria. Já devidamente uniformizadas, as torcidas tornam-se, também, “organizadas”. Sob ditadura militar, a ideia de “ordem” passou a imperar numa série de ambientes sociais. No futebol, não seria diferente! As organizadas passaram a cumprir uma espécie de papel disciplinar, ao reunir pessoas em torno das causas do clube. Todos deveriam torcer com organização, além de cobrar, dos times, resultados realmente positivos.
De volta a São Paulo, em julho de 1969, nasce a Gaviões da Fiel, primeira torcida com um caráter de apoio – sem, é claro, deixar de cobrar pela melhoria do clube. Dois anos antes, no Rio, a Charanga Rubro-Negra começa a ter dissidências. Nasce, assim, aquela que é tida, por muitos, como a primeira organizada do Brasil: a “Poder Jovem” – que, com o tempo, mudou o nome para “Torcida Jovem”, e, agora, é popularmente conhecida por “Jovem Fla.”
A torcida do Flamengo foi pioneira em muitos aspectos. Além de contar com sede no centro da capital fluminense, seus integrantes eram divididos em pelotões. Criou-se, assim, a hierarquia, devidamente respeitada por todos. Nem tudo era disciplina, fanatismo e ordem, porém. Reza a lenda que, antigamente, as torcidas uniformizadas costumavam viver de forma pacífica, a ponto de os torcedores derrotados pagarem jantares aos vencedores. Como se pode perceber, havia um espírito de competição completamente diferente do que se vê na atualidade.
Para finalizar, uma curiosidade! Muitos não sabem, mas, ao final dos anos 1960, uma torcida foi criada por Chico Buarque, Elis Regina e Nelson Mota. Trata-se da “Jovem Flu”, nascida para louvar o tricolor das Laranjeiras.

Foto: acervo da Máfia Azul

Fotos: acervo da Seita Verde

Fotos: acervo da Galoucura
Definições
Segundo Carlos Alberto Máximo Pimenta, no livro Violência entre Torcidas Organizadas de Futebol, as torcidas organizadas, aos moldes do que hoje se conhece, surgem ao final da década de 1960. Na visão do autor, da década de 1980 à atualidade, no Brasil, o comportamento do torcedor nas arquibancadas dos jogos de futebol mudou de forma considerável. O motivo está no surgimento de configurações organizativas com característica burocrática/militar, fenômeno urbano que cria nova categoria de apaixonado: o “torcedor organizado”.
Na Lei nº 12.299, de 27 de julho de 2010, o Estatuto do Torcedor define: “Considera-se torcida organizada, para os efeitos da Lei, a pessoa jurídica de direito privado ou existente de fato, que se organize para o fim de torcer e apoiar entidade de prática esportiva de qualquer natureza ou modalidade”. Em parágrafo único, a norma obriga as torcidas organizadas a manter cadastro atualizado de seus associados, ou membros, com nome completo, fotografia, filiação, número de registro civil, número de CPF, data de nascimento, estado civil, profissão, endereço completo e escolaridade.
O torcedor organizado não é somente alguém que assiste aos jogos. Ele é parte do espetáculo de um grupo que o acolhe. O objetivo da torcida organizada é incentivar o time com cantos, gestos sincronizados, instrumentos musicais, faixas e bandeiras. Para se destacar na arquibancada, usam uniformes. Para Carlos Pimenta, pode-se dizer que os torcedores organizados são pessoas normais, que admiram e gostam de futebol, do clima e da emoção promovida em conjunto.
Além disso, eles frequentam estádios de futebol em função da diversão, da viagem, da bebida, da excitação do jogo, e, também, em certos casos, do “prazer” da violência. É necessário, porém, romper visões conservadoras, preconceituosas e de senso comum acerca das torcidas organizadas.
Opiniões
Se o assunto diz respeito ás torcidas organizadas, é preciso ouvir a opinião de seus integrantes, para saber como definem e/ou se defendem de acusações, muitas vezes, preconceituosas.
Filipe Gomes, de 25 anos, é membro de uma torcida do Atlético (MG) há 12 anos. O jovem concedeu entrevista, na sede da torcida, onde organiza e lidera ações sociais, além de ministrar aulas de artes maciais. Felipe é faixa azul de Jiu-Jitsu e acredita que o esporte, dentro da torcida, contribui de forma positiva. “Hoje, é muito complicado: o ambiente já não ajuda muito. Quem o faz, porém, somos nós! Eu, como educador e professor, tenho alunos que chegam com atos de rebeldia, e fico chocado. Preciso lhes mostrar o caminho certo. Traço metas para eles, mas não depende só de mim. Aqui, há lutador profissional, que saiu da criminalidade para viver no esporte. E muita gente pensa que praticamos luta, aqui dentro, só para brigar na rua. Não é verdade! Em todos os lugares, existem pessoas de bom ou de mau caráter. Cabe a cada um saber filtrar o que é bom ou ruim”, destaca.
Torcedores comuns, não associados às torcidas, mas que frequentam estádios regularmente, também opinam sobre as organizadas. “Tenho 45 anos, frequento os jogos há mais de 15, pago meu plano de sócio-torcedor e assisto aos jogos na área da Máfia Azul. A torcida nunca me incomodou em nada. Muito pelo contrário... Gosto da animação, da energia, da festa que eles fazem, e não aprecio outros setores do estádio porque são desanimados. Sou de Uberlândia e viajo todo final de semana só para estar nos jogos”, conta Betânia Aguiar, torcedora do Cruzeiro Esporte Clube.
No último jogo da final do Campeonato Mineiro, disputado entre Galo e Raposa, outro torcedor do Cruzeiro – que não quis se identificar – comentou que as brigas entre torcidas rivais é um assunto delicado, e o poder público não trata o assunto com a devida importância. Em sua visão, a mídia só mostra o lado negativo das organizadas, por pressão do Ministério Público. Ele acha que isso se dá por preguiça em solucionar um problema grave. Segundo o torcedor, se a polícia se organizar, é possível fazer um clássico com as duas torcidas. “Prefiro não me identificar, pois não quero arrumar confusão com ninguém, mas não me sinto seguro em alguns jogos. Dependendo do time rival, e do cenário da competição, fico em casa”, afirma.
Contato: patricia.luz93@outlook.com
André Azevedo, presidente da Dragões da Real, torcida organizada do São Paulo Futebol Clube, e vice-presidente da Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg), esteve em Belo Horizonte e comentou a forma como a imprensa brasileira mostra as organizadas. Além disso, criticou as pessoas que generalizam o perfil dos torcedores organizados.
Já o professor de Educação Física, Silvio Ricardo da Silva, pesquisador e líder do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcida (Gefut), na UFMG, faz leitura complexa do assunto. “Tem havido um processo de criminalização, que, às vezes, não é justo. Existem pessoas de torcida organizada que se envolvem com malfeitos e violência? Sim, existem, mas me arrisco a dizer que não é a maioria. Não se pode jogar a água do banho fora com o bebê junto! É preciso saber separar isso. Será que a gente não consegue realmente controlar essas pessoas que promovem conflitos? Os clubes contribuem muito pouco. Para ser bem sincero, eles até atrapalham, principalmente, por questões políticas internas. Às vezes, para ter apoio, ajudam financeiramente os líderes dessas torcidas. Mas acho que os clubes têm que se responsabilizar mais, assim como a segurança pública. Por vezes, porém, um transfere a culpa ao outro”, completa.